“Fim de ciclo”, de Caracas a Buenos Aires
30/04/2015
Artigo publicado na revista argentina Ideas de Izquierda (IdZ) nº 18, abril, 2015. Traduzido por Val Lisboa para Esquerda Diário. Eduardo Molina
Ordem e progressismo
Emir Sader invoca o perigo de uma “restauração conservadora” (1) como antítese aos governos progressistas e suas “transformações”. No entanto, em Buenos Aires e Brasília (mas também em Caracas, La Paz ou Quito), longe de avançar, os “processos de mudanças” estão aprofundando seu giro à direita. Aplicando ajustes (mesmo que sejam “heterodoxos” ou nem tanto) e novas concessões às transnacionais (como na “abertura” petrolífera), medidas regressivas em aspectos democráticos como na criminalização do protesto social e da pobreza, a aliança com as igrejas e a oposição ao direito ao aborto etc., buscando “sintonizar” com a classe dominante que reclama mais “ordem” para retomar o caminho do “crescimento”.
Este retrocesso não se deve a “erros” circunstanciais, pois tem alcance “estratégico”, expressando o esgotamento das possibilidades expansivas do ciclo de reformas da década passada. Entrou numa nova etapa na qual diante das condições internacionais adversas e o declínio econômico, os governos autodenominados “populares” optam por adaptar-se mais abertamente às necessidades do capital na administração das crises.
Progressismo e direita são dois polos politicamente em disputa. Sob os governos nacionalistas e de centro-esquerda e como subproduto das novas relações de força criadas no ciclo de levantes entre 2000 e 2005, o povo trabalhador conquistou posições econômicas e sociais a defender. Desse ponto de vista, “não é a mesma coisa” que as soluções abertamente reacionárias que preferiria o grande capital. Porém, a função histórica dos “pós-neoliberais” não é transformar a ordem social do capitalismo latino-americano, mas preservá-lo e “atualizá-lo” mediante reformas parciais.
Esta é a chave para abordar a relação entre “ordem e progressismo”(2) ou, em outras palavras, entre a “ordem” que a classe dominante deseja como necessário para o progresso (capitalista) e as soluções a sua crise oferecidas pelos nacionalistas e progressistas.
Tem-se dito que o velho lema positivista de “ordem e progresso” se atualiza em nossa época e na América Latina sob novas figuras, como “segurança e desenvolvimento” ou “estabilidade e crescimento”(3) , que se referem à articulação entre as condições sócio-políticas e a marcha do processo de acumulação capitalista. Esta relação pode explicar-se a partir do conceito de “equilíbrio dinâmico” elaborado por Leon Trotsky, equilíbrio no qual se combinam dialeticamente o movimento econômico, a luta de classes, as relações políticas e interestatais, e que o regime capitalista rompe e reconstrói incessantemente “estendendo, de passagem, os limites do seu domínio”, pelo qual “está sempre em processo de ruptura ou restauração”(4) .
Nos primeiros anos deste século o equilíbrio se rompeu sob o impacto das crises econômicas e políticas, e os levantes populares em vários países latino-americanos. A classe dominante teve que resignar-se à ascensão ao governo de forças políticas reformistas como “recurso de emergência”. Os moderados Lula, Kirchner ou Tabaré Vazquez, e os “radicais” Evo Morales e Chavez, foram inevitáveis devido a sua influência popular quando a fórmula neoliberal se tornou insustável. O “momento reformista” foi necessário para evitar uma ruptura maior, de resultados “catastróficos” ou diretamente revolucionários para a ordem. Surgiram duas variantes “pós-neoliberais”: uma mais nacionalista e populista nos países mais conflagrados, como o chavismo na Venezuela (e com traços próprios, Evo Morales, na Bolívia); e outra de centro-esquerda onde a crise havia sido menor, como no Brasil e no Uruguai. A Argentina mostra uma situação particular porque depois da ruptura da conversibilidade e as jornadas de dezembro de 2001, que atingiram o sistema de partidos, teve que recorrer à ala de centro-esquerda do peronismo.
O ciclo reformista se sustentou e prolongou porque contou a favor um inédito ciclo de crescimento, alimentado pelo boom internacional das matérias primas e a relativa recomposição dos mercados internos, que permitiu uma estabilização interna, assim como maiores margens de manobra perante o imperialismo. Em diferente grau, recompuseram a capacidade de mediação do Estado com políticas de democratização formal, “inclusão social” incorporando parcialmente demandas populares e um tíbio neodesenvolvimentismo, recuperando certa autonomia na política internacional.
A categoria gramsciana de “revolução passiva” é empregada por diversos estudiosos para interpretar estas reformas. Contudo, Gramsci a utilizou para analisar os processos na Europa do século XIX, nos quais, para evitar uma reedição da Revolução de 1848, cumpriam “por cima” tarefas históricas como a unidade nacional na Alemanha e na Itália, mediante os métodos reacionários de um Bismarck ou um Cavour, chanceleres de viés monarquistas(5).
Na época imperialista essa possibilidade está esgotada porque encarar seriamente as tarefas democrático-estruturais como a liberação nacional entra em contradição com as bases da ordem capitalista nos países dependentes. Nenhum dos governos pós-neoliberais se propôs a romper com o capital imperialista, realizar uma profunda reforma agrária ou nacionalizar os recursos naturais. Foram, todos, “honradores dos compromissos” e o “nacionalismo petroleiro” se limitou a rediscutir a associação com as transnacionais, entre as “radicais” Venezuela, Bolívia e Equador”, para não falar do Brasil e da Argentina.
O elemento de “revolução passiva” nestes limitados “processos de mudança” favorece a recomposição da ordem, não sua superação(6). Enquanto se manteve a continuidade nos aspectos econômicos e sociais chave herdados do neoliberalismo (como a especialização exportadora, o endividamento externo ou a precarização do trabalho), as reformas parciais contiveram a mobilização social, “passivizando” as classes subalternas e cooptando os “movimentos sociais” para “passar do protesto à proposta” – segundo a frase de Evo Morales.
A tarefa estabilizadora do ciclo reformista – combinando seus elementos de “revolução passiva” com os de “restauração” – foi preparando o terreno para que a classe dominante possa aspirar a uma plena “restauração conservadora”.
O ocaso progressista em um mau momento
A decadência dos governos nacionalistas e de centro-esquerda cria um cenário de transição política em meio a tensões e crises em que a oposição de direita se posta na ofensiva, como ilustram as situações argentina, brasileira e, de modo particular, venezuelana. O giro reacionário na política latino-americana se expressa “por dentro” no rumo dos governos pós-neoliberais (que retrocede nos elementos de reforma e acentua os de restauração) e não apenas “por fora”, na recomposição da direita continental ou nas pressões do imperialismo. É o fim do período “nunca menos” que há alguns anos Cristina Kirchner soube utilizar para passar as políticas de ajuste mais ou menos “heterodoxas” que atacam as condições de vida e de trabalho da população, erodindo sua base social. Ainda que cada caso seja diferente, em geral ainda não há ataques neoliberais escancarados contra as massas, e sim uma interrupção das concessões combinada com ataques indiretos via ajustes ficais ou a inflação.
Suas possibilidades como regimes de mediação baseados na capacidade de fazer algumas concessões às “classes subalternas” se diluíram, ao tempo em que a burguesia e o imperialismo pressionam por uma normalização das formas de dominação. Este “fim de ciclo” abre um período de transição no qual se discutirá a reconfiguração política perante uma nova etapa. O progressismo se propõe manter como força de governo “responsável” e capaz de gerir as crises, enquanto a direita que se apresenta “renovada” reflete o interesse da burguesia, assentada em camadas privilegiadas das “classes médias”, em desprender-se dos custos extras e métodos incomodativos do “populismo”.
Adaptando-se a esta pressão, o progressismo deseja “controlar sua própria transição”. É a tendência a um “pós-kirchnerismo” na Argentina, no qual uma das variantes em discussão é o “sciolismo”, ainda que pudesse ocorrer sob outra figura de conteúdo similar.
A Venezuela apresenta um quadro particular, mas não escapa a esta tendência geral. Simpatizantes do chavismo, como Atilio Borón, têm rechaçado a possibilidade de que se produza uma transição pós-chavista em Caracas. Entretanto, o rumo à “moderação” foi assinalado pelo próprio Chaves no final de sua vida, mediante atos significativos como o abraço ao presidente Santos, da Colômbia, a entrada no Mercosul ou a designação de Maduro como sucessor, deixando em segundo plano o discurso de “socialismo do século XXI”.
Como expressão mais radical do ciclo reformista, a Venezuela bolivariana concentrou fortes contradições com os Estados Unidos e a burguesia local, devido a sua importância como produtor de produtos petrolíferos e à disputa pela partilha da renda petroleira. Ao mesmo tempo, o caráter bonapartista do regime da V República e o grau de polarização social e política tornam muito mais conflituosa uma transição. Na crise política e no debilitamento do governo Maduro se refletem as dificuldades para definir uma saída – uma transição – no fim da etapa da “revolução bolivariana” (ver “El fin de la etapa de la ‘revolución bolivariana’”).
O apoio político e eleitoral aos progressistas é sua variante de transição à ordem, não um recurso de “mal menor” diante da direita. Chavistas, kirchneristas e petistas denunciam a “conspiração permanente”, a “guerra econômica” e as ameaças golpistas, porém opõem a isso a “conciliação permanente” e os ajustes favoráveis ao empresariado.
Personalidades da centro-esquerda, como Emir Sader ou a revista argentina Carta Abierta(7), pretendem encobrir este rumo convocando a “cerrar fileiras” com Dilma ou Cristina. Enfatizam no poder midiático, contudo a Globo e o Clarin não são mais do que expressão visível do poder econômico, social e cultural do grande capital, cujas bases os progressistas respeitaram, preservaram e ajudaram a ampliar nessa mais de uma década de governo. Os meios de comunicação influenciam, mas o descontentamento operário e popular não é derivado da propaganda televisiva, mas da queda do salário, da carestia, da deterioração as condições de transporte, saúde e educação, da corrupção galopante e da impunidade da repressão.
Sua “batalha cultural” evita mencionar esta política de retrocesso, limitando-se a recordar o “concedido” há uma década e a justificar o rumo atual. Não é casual que o insignificante Manifesto de Buenos Aires(8) apenas consiga deixar em aberto “um ciclo político que ainda desafia o tempo, contra vento e ondas”: reflete a bancarrota ideológica e política do progressismo.
A classe trabalhadora presente
As possibilidades históricas não se reduzem à continuidade do progressismo em retrocesso ou à “restauração conservadora”, reeditando as oscilações pendulares entre ciclos conservadores e reformistas que caracterizaram a história política da região. Nenhum determinismo fatal obriga a isso. Os ritmos e resultados se decidirão na luta de classes, no marco de complexos fatores, desde a economia e política internacionais aos fenômenos políticos numa etapa de crise do sistema capitalista.
São várias as “bifurcações” possíveis e há fundamentos sociais para pensar hipóteses estratégicas a partir da força e potencialidade da classe trabalhadora, que ao calor do crescimento anterior adquiriu novas forças. Hoje pesa a “questão social” na agenda de vários países da região e pode se converter numa grande fator de “dissidência pela esquerda”. Desde o final de 2012 as paralisações de alcance nacional, greves e mobilizações na Argentina, Bolívia, Brasil ou Chile marcam sua presença na cena, ratificada pela quarta paralisação geral em 31 de março, na Argentina, junto com as greves no Brasil e outras mobilizações.
O movimento operário, junto com setores populares e jovens, vem sinalizando que não está disposto a aceitar sem resistência suas condições de vida e aspirações diante dos ataques “progressistas” ou neoliberais. São sintomáticas as paralisações gerais e lutas em fábricas na Argentina, como o processo iniciado no Brasil com os protestos da juventude em junho de 2013 e um retorno das greves.
Neles germinam as forças decisivas para enfrentar a reação e a possibilidade de um novo horizonte estratégico para as lutas sociais. Se no início do século tiveram maior importância os “movimentos sociais” de caráter popular ou camponês, hoje a classe trabalhadora pode assumir centralidade, criando um eixo unificador para a aliança operária e popular na perspectiva de respostas revolucionárias aos problemas do continente.
Anti-imperialismo, demandas populares e independência política de classe
Não é possível mobilizar contra a reação e os ataques patronais sem combater os ajustes progressistas. O movimento operário e popular necessita de outro programa e outra perspectiva para desenvolver sua luta. A subordinação política aos governos ou às diversas correntes burguesas amarra as mãos dos trabalhadores e divide suas organizações. É necessário um programa que articule medidas consequentemente anti-imperialistas com as demandas operárias e populares para que a crise seja paga pelos capitalistas. Porém, isso é inseparável da luta pela independência política.
A outra face da intervenção nas lutas operárias, populares e estudantis é a luta para construir alternativas políticas de classe, enfrentando o retrocesso dos governos nacionalistas e progressistas e a tentativa da oposição pró-imperialista de impor alternativas pela direita, como na Venezuela, Argentina e Brasil.
Lamentavelmente, há setores da esquerda combativa latino-americana que consideram possível influenciar o chavismo ou o MAS de Evo Morales a partir de “apoio crítico”. Uma clara delimitação política não está oposta, ao contrário, à possibilidade de desenvolver ações unitárias e de frente única diante da ofensiva reacionária e pelas necessidades mais sentidas pelos setores operários e populares, mesmo que estes mantenham expectativas nesses governos. A frente única, como Lenin e Trotsky entendiam – “golpear juntos, marchar separados” –, supõe a independência política. Esta seria a melhor forma, além de tudo, de ajudar a avançar o “processo social” (a luta e a experiência política das massas). Podem ser propostas boas consignas de mobilização, mas sem defender intransigentemente a independência política corre-se o risco de terminar como impotentes “conselheiros de esquerda” do chavismo ou do MAS.
Na Argentina, a combinação entre a luta por desenvolver um sindicalismo classista, de esquerda, junto com o impulso à Frente de Izquierda y de los Trabajadores (FIT, pela sigla em espanhol) como polo de independência política dos trabalhadores, implica em assentar as bases de uma alternativa de classe. As lições das mais importantes experiências políticas latino-americanas e internacionais desempenham um papel não desprezível nessa construção. A intervenção prática – orgânica – na vida do movimento operário e da juventude, a ação política e a luta ideológica e cultural devem estar unidades por uma mesma paixão estratégica, nos âmbitos nacional e internacional: impulsionar a organização independente do movimento operário e de massas para que seja capaz de apresentar uma alternativa revolucionária à crise capitalista.
1 Emir Sader, “Restauración conservadora”, Página/12, 6/09/2014.
2 Título de um livro de Martín Rodríguez. Orden y progresismo. Los años kirchneristas, publicado por Emecé. Ver comentário de Fernando Rosso e Juan Dal Maso no blog Los galos de Asterix.
3 Este raciocínio é de Oscar Ozlak. Ver La formación del Estado argentino, Buenos Aires, Planeta, 1999, pp. 27 e ss.
4 Leon Trotsky. “La Situación Mundial”, em Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición (compilación), Buenos Aires, CEIP León Trotsky. 1999, pp. 31 e ss.
5 Antonio Gramsci utiliza esta categoria em várias notas dos Cuadernos de la Cárcel, como “Punto para un ensayo crítico sobre las dos Historias de Croce: Italia y Europa”; “La concepción del estado según la productividad (función) de las clases sociales”.
6 Ver Juan Dal Maso e Fernando Rosso, “Revolución pasiva, revolución permanente y hegemonía”, Ideas de Izquierda 13, setembro, 2014.
7 Espacio Carta Abierta é um grupo de intelectuais argentinos (kirchneristas) formado em 2008 perante a crise do governo Cristina Kirchner com o agronegócio em torno das retenções financeiras dos produtos agrícolas. Mediante “cartas abertas” esses intelectuais fazem pronunciamentos, interpretações, debates e posicionamentos diante da realidade nacional, criando base intelectual de apoio ao kirchnerismo.
8 Do pomposamente denominado Seminario por la Emancipación y la igualdad, de 12 a 14 de março, com a participação de expressivas figuras intelectuais e políticas da América Latina e da Europa.