Frente a condenação ã morte de 529 pessoas no Egito
É preciso uma política revolucionária no Egito
07/04/2014
A situação aberta no Egito encontra-se marcada por uma grande inflexão. O exército que se apoderou do poder detrás de um governo interino após a queda de Mahmoud Morsi em 2013, até então com o general Abdel Fatah al-Sissi e Adyl Mansour ã frente, declarou em março que condenou ã morte 529 pessoas por serem apoiadoras da Irmandade Muçulmana. Trata-se de uma medida absurda, de um Estado assassino, que coloca o processo revolucionário egípcio no retrocesso mais profundo desde que se abriu em 2011 com a queda de Mubarak. Evidentemente há que se extrair algumas conclusões elementares desse fato. A primeira posição é se colocar radicalmente contra esse genocídio anunciado pelo governo egípcio. A outra é que esse fato reforça a premissa de que sem a classe trabalhadora ã frente, com sua vanguarda organizada em partido revolucionário, não há vitória de fundo possível, nem a conquista de demandas democráticas estruturais, com os triunfos parciais sendo logo transformados em seu contrário.
Entretanto, apesar da barbárie declarada pelo governo interino egípcio e na contramão das conclusões que a realidade exige dos revolucionários, há setores da própria esquerda, como a LIT, organização internacional do PSTU brasileiro, que soltou mais uma nota escandalosa, na qual reafirma que a queda de Morsi, mesmo tendo sido usurpada pelos militares foi uma “imensa vitória democrática das massas”, e que o atual governo não teria “optado pela repressão sangrenta ao movimento de massas”. Seguramente, os 529 condenados ã morte discordam.
O exército, com o governo interino ã frente, impõe um imenso retrocesso
A queda da Mahmoud Morsi, presidente eleito ligado ã Irmandade Muçulmana em julho de 2013, fora motivada pelo descontento de amplos setores da população contra o governo. Depois de um ano da eleição, o governo havia se desgastado profundamente por não ter respondido ás demandas elementares de “pão, justiça e liberdade”, e por tentar impor através da Constituinte votada poderes especiais a Morsi, além de manter a condenação ás greves dos trabalhadores. Porém, o exército se adianta e dá um golpe, assassinando de uma só vez mil pessoas, tomando o poder e instaurando um governo interino, com Abdel Mansour adiante, cujo objetivo é assentar as bases para ascensão do exército pela via eleitoral. Tanto é assim, que Abdel Fatah al-Sissi, bem como outros membros proeminentes do governo interino entregaram postos de ministros interinos em fevereiro desse ano, para poderem se apresentar como candidatos aos cargos executivos do país. Isso levou a que membros do antigo partido de Mubarak assumissem cargos de primeira ordem, como Ibrahim Maahlab, ex líder do partido do ditador deposto, que agora é premiê do Egito. Desde então, a situação egípcia se vê marcada por um retrocesso impossível de ser ignorado.
Desde a ascensão do governo interino, não só nenhuma demanda do povo e dos trabalhadores foi conquistada, como houve uma escalada absoluta da repressão. Apoiando-se no extenso sentimento de repúdio a Morsi, o governo chefiado por Abdel Fatah al-Sissi lançou-se contra a Irmandade Muçulmana, numa tentativa de desviar o descontentamento popular em relação ã continuidade da pobreza, desemprego e submissão ao imperialismo para essa via distorcida. E de fazer da repressão a esses setores um exemplo aos trabalhadores e demais descontentes sobre o que poderia ocorrer caso a luta de classes recrudesça.
Com a maior declaração de pena de morte em massa da história moderna, somada ã política de gatilho fácil nas manifestações da oposição, responsável pela morte de milhares de pessoas, o governo interino chefiado pelo exército dá um salto em seu caráter reacionário. A isso se soma o fato de que há cerca de 16 mil presos, que abarcam não apenas os apoiadores da Irmandade Muçulmana, como também diversos ativistas que participaram da queda de Mubarak em 2011, e o governo interino já anunciou que julgará mais 919 pessoas da província de Minya, localidade em que estão acampados os apoiadores de Morsi. A própria legislação antigrevista elaborada pela junta militar em 2011 se mantém, enquanto greves como a dos metalúrgicos de Suez foram reprimidas. Trata-se de uma ofensiva repressiva típica de um regime bonapartista, que apesar de não estar assentado pelo caráter transitório do governo interino, busca forjar as condições para que se crie uma estabilidade garantida pela repressão. Portanto, ainda que as medidas bonapartistas não sejam desferidas contra a classe trabalhadora diretamente num determinado momento, seu objetivo é criar as condições para que essa tampouco saia a lutar. São antioperárias por definição.
Também cai a máscara progressista da oposição liberal ã Irmandade Muçulmana. O movimento Tamarod, ou Rebelião, que surgiu no calor das mobilizações contra Murabak como um dos principais aglutinadores da vanguarda, e que agora assume posições absolutamente contrárias à luta pelas demandas democráticas que motivaram as manifestações de 2011. Isso porque agora o movimento Tamarod anuncia que apoiará a candidatura do general Abdel al-Sissi ã presidência do país, sob o pretexto de que “não pode ficar contra as aspirações das massas”. Esse é um curso abertamente contrarrevolucionário, que está sustentado também no apoio do imperialismo norte-americano, e de potências regionais aliadas como a Arábia Saudita e o Qatar. Tais potências se aproveitam das grandes inflexões abertas em países que foram os palcos da primavera árabe, e alentam a formação de uma base de direita sob o discurso de que é preciso conquistar a estabilidade, para sair da crise, e que para tal haveria que derrotar os “terroristas”. Para isso se opõem ao esboço de unidade que se formou contra as medidas de exceção impostas pelo exército, entre setores do movimento estudantil, da Irmandade Muçulmana e da esquerda ligada aos cliffistas [1] no Egito no final de 2013.
A LIT no polo oposto de uma política revolucionária
Na contramão dessas conclusões a LIT, num artigo publicado poucos dias antes do anúncio da pena de morte coletiva intitulado A revolução egípcia e as tarefas da esquerda [2] insiste em aprofundar seus erros estratégicos. Seguindo o seu já tradicional abandono do critério de classe, elementar para qualquer marxista para avaliar os processos abertos pela primavera árabe, agora a LIT afirma que não há diferenças entre o governo de Morsi e o atual governo interino que encobre o exército, real detentor do poder, já que haveria uma “ditadura militar no país desde 1952”.
Essa definição absolutamente simplista que iguala o regime de Nasser de 1952 ao de Mahmoud Morsi de 2013 demonstra como é difícil, senão impossível, compreender como a suposta permanência de uma ditadura militar pôde se configurar ao mesmo tempo como “vitórias da revolução democrática”, tal como a LIT pretende. Na verdade essa manobra busca justificar sua caracterização de que a queda de Morsi e o golpe do exército que lhe sucedeu não foi uma inflexão ã direita no processo, mas uma vitória democrática das massas. Dessa maneira afirmam: “(...) se o governo de Morsi-HM era um governo mais do mesmo regime militar, a queda de Morsi como produto de uma imensa mobilização popular apesar da enorme contradição que significou o golpe militar, não foi uma ‘derrota’ (como afirma a maioria da esquerda) mas uma imensa vitória democrática das massas, que abriu um novo capítulo na revolução egípcia”.
De acordo com a análise da LIT, a força da mobilização de massas teria sido tal, que atuou como “elemento determinante”, obrigando o exército a dar o golpe contra Morsi. Dificilmente tão poucas palavras encerraram tamanha quantidade de erros. O próprio autor do artigo em questão é obrigado a admitir que o golpe do exército foi produto não de uma fortaleza das massas, mas de suas debilidades subjetivas. Como então esse resultado pode ser considerado como uma “imensa vitória democrática das massas”? Em que consistiria essa “vitória democrática”, se desde a queda de Morsi o que tem lugar é um banho de sangue perpetrado pelo exército, culminando agora na pena de morte de 529 pessoas?
Mas para a LIT há “concessões” do exército ás massas. Em sua opinião o que o exército realiza seria uma repressão “seletiva”, dirigida apenas contra a Irmandade Muçulmana. Nem a declaração da pena de morte massiva os faz rever suas posições, sendo denunciada de maneira completamente superficial numa curta nota [3]. Demonstrando seu hábil manejo do formalismo, em detrimento da dialética, o autor do artigo afirma que: “Se a queda de Morsi foi uma vitória da ação revolucionária das massas, as mobilizações da HM que lutam pelo retorno de Morsi ao poder, só podem ser contrarrevolucionárias” [4]. Seria então a perseguição ã Irmandade Muçulmana pelo governo interino e o exército uma ação progressista, já que essa visaria reprimir a “contrarrevolução”? O absurdo dessa posição já levou a LIT a aconselhar o exército e o governo interino a como reprimir a Irmandade Muçulmana [5].
Isso se soma a mais uma demonstração do objetivismo da LIT-PSTU, para quem as ilusões que as massas ainda mantêm no exército, a ausência de um partido revolucionário, ou da classe trabalhadora como sujeito, não seriam empecilhos para que estas obtenham “imensas vitórias democráticas”. Apesar de formalmente dizerem que o principal problema é a ausência de uma direção revolucionária, diminuem a todo o momento a importância desse elemento, ao afirmarem que mesmo com o golpe do exército foi conquistada uma “imensa vitória democrática”. Ao caracterizarem como ação revolucionária as mobilizações das massas na queda de Morsi, aspiração justa do povo egípcio, separando-a da ascensão do exército, isto é, de maneira como isso se deu na realidade, anulam os resultados do processo como se este não tivesse a menor importância. Dessa maneira, toda a avaliação que fazem é equivocada. Ainda que os anseios por mudanças e obtenção de demandas democráticas e de melhoria de vida sigam ativos entre as massas no Egito, o resultado do processo de destituição de Morsi que favoreceu o exército, o fato de que as manifestações diminuíram desde a ascensão do governo interino, e de que Abdel AL-Sissi tenha se firmado como o mais provável próximo presidente do Egito, demonstram que a contrarrevolução também pode se dar pela via de um desvio, com as eleições que estão sendo preparadas.
Por sua vez, há que aclarar que a Irmandade Muçulmana é uma organização islamista, cuja direção é integrada por elementos burgueses e reacionários, que querem instaurar um Estado teocrático. Entretanto, em sua base há setores populares. E sua repressão sob as mãos do governo interino é parte de um curso que visa criar as condições para atacar qualquer setor opositor, inclusive os trabalhadores. Ao caracterizar como “a maior força contrarrevolucionária” tais setores, utilizando para tal o critério de estarem “contra o movimento de massas”, a LIT-PSTU substitui a definição de classe para caracterizar onde está a revolução e a contrarrevolução, o que a tem levado a posições desastrosas. E o exército, o que seria então?
Isso atende ã sua orientação estratégica de obter a queda dos regimes de turnos, não importando sob qual direção, a quem favorece, e quais os resultados do processo. Com essa definição, a LIT-PSTU torna-se absolutamente impotente para combater a manobra do exército, de deflagrar uma perseguição ã base da Irmandade Muçulmana – enquanto coloca no governo interino antigos membros do alto escalào do governo de Mubarak –, que visa bloquear a dinâmica da luta de classes, e transformá-la em luta sectária, para canalizar por uma via que só favorece aos altos dirigentes das Forças Armadas o descontentamento das massas. Não basta condenar o governo interino, se na orientação política a LIT-PSTU termina fazendo coro com a perseguição bonapartista que esse desfere contra as organizações opositoras, mesmo que essas em nada sejam revolucionárias. Seria cômico, se não fosse trágico, ver os paladinos da “revolução democrática” cumprindo tal papel para o governo do exército!
A classe trabalhadora precisa se colocar como sujeito
Uma voz dissonante na EFITU (Federação Sindical Independente Egípcia) cuja posição majoritária foi de apoio ã ascensão do governo interino em 2013, Fatma Ramadan, membro do comitê executivo daquela organização corretamente advertia: “Os militares não foram responsáveis por acabar pela força com as greves de Suez, Fayyoum, e em todo o Egito? Os militares já não prenderam vários de vocês, e os submeteram a cortes militares que os julgaram apenas porque vocês exerciam seu direito de greve? Será que eles também não trabalham incansavelmente para impedir que os egípcios participem de protestos, greves e mobilizações por seus direitos? (....) A Irmandade Muçulmana cometeu crimes, e deve ser julgada e responder por eles, assim como a polícia e o exército. Mas não nos deixemos enganar pela substituição de uma ditadura religiosa por uma militar.(...) Os trabalhadores não se devem deixar levar para batalhas que não sejam as suas próprias” [6].
Há uma onda de importantes greves percorrendo o Egito. Essas mobilizações começaram no ano passado, e se estendem até agora, demonstrando que a classe trabalhadora do país segue ativa. A negativa do governo interino de responder ás demandas salariais de regulamentação do salário mínimo em 1200 libras para o setor público e privado resultou na mobilização de diversos setores, dentre os quais se destacam os metalúrgicos de Suez, petroleiros de Alexandria, das fortes manifestações dos trabalhadores têxteis de Mahalla, que a exemplo das importantes lutas protagonizadas em 2008, estão se conformando como uma vanguarda que acumula diversas experiências. Além desses setores industriais, também protagonizaram greves, os médicos e trabalhadores da saúde, motoristas de ônibus, funcionários públicos, e trabalhadores dos correios. Ademais, as demissões no setor privado aumentaram exponencialmente, bem como a negativa em arcar com os direitos previstos por lei. É preciso que se ocupe e coloque para produzir toda a fábrica que ameace demitir, ou que demita. Há que avançar para a constituição de organismos de autodeterminação dos trabalhadores, em que se discuta como gerir e a serviço de quê deve estar a produção.
Para que isso se dê de modo a reinstaurar a dinâmica revolucionária em chave superior no país, é preciso não só que os trabalhadores façam greves por suas demandas, mas que se organizem, tendo ã frente um partido revolucionário marxista que reúna seus setores mais conscientes, que impulsione os organismos de autodeterminação dos trabalhadores e do povo. A ausência desses elementos, até o momento, é um problema estratégico, que permitiu que o processo revolucionário mais avançado da primavera árabe esteja hoje diante de uma situação de grande retrocesso. Mas a classe trabalhadora ainda pode avançar nesse sentido. Em primeiro lugar deve necessariamente romper politicamente com o governo interino, e com o exército de Abdel al-Sissi, e desenvolver a mobilização contra os massacres e a repressão do exército e seus cúmplices civis, para transformá-la numa luta contra o governo golpista cívico militar que está a serviço da burguesia. Para isso é necessário avançar na unidade dos trabalhadores e setores populares laicos e muçulmanos defendendo um programa independente, que exija o fim das leis repressivas, fora o governo golpista dos militares e dos partidos liberais. Há também que impulsionar a revindicação de castigo aos responsáveis pela repressão e os massacres. Essa luta deve levar ã reabertura das grandes mobilizações pelas demandas econômicas e políticas, que iniciaram o processo em 2011, em direção ã construção de um governo operário e popular, que rompa com o imperialismo. Essa é a via verdadeira de obter triunfos reais para os trabalhadores e as massas.
NOTASADICIONALES
[1] Corrente ligada a Toni Cliff, um dos fundadores do SWP britânico.
[2] Ronald Leon – WWW.litci.org
[3] Sobre la condena a muerte de simpatizantes de la Hermandad Musulmana – WWW.litci.org
[4] Ronald Leon - A revolução egípcia e as tarefas da esquerda- WWW.pstu.org.br
[5] Ver Vergonhosa capitulação da LIT no Egito - http://www.ler-qi.org/Vergonhosa-ca...
[6] Egypt: “Do not let the army fool you” – independent union leader speaks out - ttp://menasolidaritynetwork.com/category/union-news/efitu/