Brasil
150 dias de governo Dilma: mostras de um governo mais frágil e com crescentes contradições
03/06/2011
Quando Dilma foi eleita a economia do país estava crescendo a quase 10% ao ano. A inflação começava a se fazer sentir, mas impulsionado por aumentos salariais acima da inflação (porém abaixo dos ganhos de produtividade da patronal) e crédito farto os trabalhadores tinham certeza que iam melhorar sua situação de pouco em pouco. Esta certeza consumista e reformista vestia como luva com o discurso de um país de classe média. Não faltavam imensas obras do PAC, presença no noticiário internacional e grandes eventos como a Copa e as Olimpíadas para confirmar.
Os resultados da eleição e a composição de um parlamento com a mais significativa maioria governista em muito tempo, pareciam indiciar que salvo por alguma turbulência externa como a quebra da dívida em algum país do mediterrâneo (o que não se deve descartar nem no curto nem no médio prazo) o país velejaria sob o timão da “mãe do PAC” em um mar sereno. Rapidamente a foto mudou. O principal ministro de Dilma está envolvido em diversas denúncias de tráfico de influência. A prostração de Dilma e de seu governo em defender ou defenestrar geraram uma conjuntura política nova onde diversos setores governistas expõem seus pleitos e ameaças, paralisando e gerando crises no governo. O primeiro round desta conjuntura se deu na votação do Código Florestal onde Dilma tinha somente algumas diferenças (já que no essencial tinha acordo com o código que ajuda a desmatar e fortalece os latifúndios), mas que mesmo assim abriu-se grave crise com o vice-presidente e seu poderoso partido, o PMDB.
O segundo round desta conjuntura foi igualmente infame, sob pressão de evangélicos e católicos Dilma retirou o Kit Anti-Homofobia e ainda prometeu aos mesmos que não haverá nenhuma medida “sobre costumes” sem consultá-los. Esta postura gerou diversas críticas e contradições com o apoio ao governo em movimentos LGBTTI e de mulheres. Concomitantemente abriu-se um terceiro flanco do governo. Enquanto votava-se o código florestal não só aumentava exponencialmente a devastação da Amazônia (28% só em Mato Grosso segundo dados do governo) como os ruralistas sentiram-se encorajados a resolver todas antigas pendências em sangue: em poucos dias quatro líderes sem-terra, extrativistas e ecologistas foram mortos em Rondônia e no Pará. Até reacionários meios de comunicação como O Globo e a Igreja Católica através da Comissão Pastoral da Terra falam de “crônica de mortes anunciadas”. E o governo Dilma diz que não tem como garantir a segurança de todos os ambientalistas e sem-terra sofrendo ameaça de morte.
Diversas questões democráticas têm aparecido como fonte de crises deste governo que se declarou um “governo dos direitos humanos”. Ao mesmo tempo, ainda sem romper uma subjetividade reformista, surge um estendido ativismo proletário em diversas categorias. Depois das rebeliões de precários e terceirizados em obras no PAC e em diversas universidades e locais de telemarketing que marcaram os meses de março e abril, agora aparece um ativismo, menos anti-burocrático porém mais nacional, de diversos setores do funcionalismo, com os professores ã frente. A disposição de luta de centenas de metroviários que não aceitaram o recuo de sua direção sindical (PSOL e PSTU) e querem organizar uma greve para garantir a isonomia entre os distintos trabalhadores é mais uma mostra deste cenário nacional. Em quase todos os estados do país as greves tem sido uma das principais pautas dos jornais burgueses. A situação ainda segue a mesma de conformismo e reformismo, mas contradições têm marcado o terreno, é sobre elas que nos debruçamos neste artigo.
O governo forte de Dilma e das empreiteiras precisa de Lula para bombeiro e articulador
Dilma e sua grande bancada de apoio seguem fortes sobretudo quando se trata de defender a reprodução do atual modelo do capitalismo brasileiro baseado na expansão agrícola, trabalho precário e estabilidade do regime que o organiza e garante em base a vultuosas somas para enriquecimento pessoal.
Palocci está envolvido em fortes acusações de tráfico de influência. A oposição demo-tucana em frangalhos internamente conseguiu o que precisava para alguma coesão: algum argumento fácil externo. Petistas “progressistas” como Paulo Henrique Amorim, sindicalistas vendidos mas base importante do governo como Paulinho da Força (PDT-SP), e diversos governadores e senadores do PT exigem a cabeça de Palocci junto ã oposição. Dilma em seu piloto automático conduz seu governo “business as usual” para desespero petista, tendo Lula que aparecer em Brasília chamar os ministros e Dilma, senadores petistas e depois sindicalistas para reuniões e orientar todos para blindar Palocci, o que não vem surtindo efeito até o momento. A necessidade de Lula coordenar as ações do governo mostram a seriedade do acontecimento bem como uma tendência a enfraquecimento tanto do governo como do regime, tendo que recorrer ao ex-presidente para organização e sustentação. Ao mesmo tempo, Lula ao adotar tal postura dá passos que pode hipotecar seu futuro político junto ao de sua aprendiz.
Mesmo com as denúncias aparecendo na mídia, elas estão aparecendo a conta-gotas. Os escândalos de Campinas e do médico milionário chefe da casa civil ultrapassam em muito tal ou qual petista eminente ou simplesmente este partido. Estas empresas envolvidas nestas denúncias, como a Camargo Correia, WTorre, Odebrecht, entre outras, estão envolvidas em obras em todo o país, em governos petistas e tucanos e há décadas estão ligadas ao Estado brasileiro, desde ao menos as grandes obras da ditadura militar. São as caras petistas atuais de um esquema supra-partidário desta corrupta democracia burguesa brasileira que garante os negócios de magnatas contra os interesses do povo. Distintas frações da burguesia e distintos grupos dos principais partidos estão envolvidos, e deste modo se cruzam interesses tanto de dar corda nas denúncias como de abafá-las seja no governo seja na oposição. Esta situação, nada inédita no país, mostra mais uma vez como somente a classe trabalhadora desde seus sindicatos, locais de trabalho que pode dar uma saída progressista apurando todos as fraudes e confiscando os bens destes ladrões do dinheiro do povo. É preciso exigir das grandes centrais como a CUT, CTB, Força Sindical que larguem seu silêncio cúmplice e organizem um plano de luta. Os sindicatos anti-governistas e principalmente a CSP-Conlutas precisam liderar este processo.
O governo forte não consegue juntar a agricultura familiar e o agronegócio: um campo manchado de sangue e moto-serras
Lula teve crises com o MST, os sem-terra e camponeses pobres em geral. O governo diminuiu o ritmo da ínfima reforma agrária e contribuiu para o aumento da concentração de terras. Esta situação só não se expressou em luta de classes pois o aumento do emprego bem como medidas como o Bolsa Família, cooptaram amplas camadas dos potenciais descontentes, nem o MST orientou-se em denunciar “seu governo”.
Foi neste mesmo espírito de favorecimento do agronegócio e do latifúndio que Aldo Rabelo (PCdoB-SP) redigiu em parceria com a reacionária ruralista Kátia Abreu (PSD, partido do Kassab, –TO) o novo código florestal. Nele antigas áreas de preservação são diminuídas, o desmatamento já ocorrido anistiado. Segundo O Globo, só com a emenda 40 milhões de hectares que teriam que ser reflorestados foram anistiados e com a redução das reservas legais outros 60 milhões estariam ameaçados, perfazendo 1 milhão de quilômetros quadrados (25/5, pg.12). Ou seja, com uma canetada os deputados permitiram o desmatamento de 11,7% da área do país. Este código moto-serra apesar de, segundo os jornais, contar com oposição de Dilma, não contou com a menor mobilização do governo e de suas bases para opor-se ao mesmo. Dilma pode falar que achou uma vergonha e vetará, mas parece mais um discurso para o país não ficar feio em negociações internacionais do que para se contrapor ao projeto.
Dilma não se opõe ao conjunto do projeto pois ele expressa com um afã um pouco mais rápido que o de seu governo a mesma orientação: favorecer o agronegócio e a concentração fundiária. A única diferença é que neste projeto não há como sequer discursivamente mostrar como estão sendo preservados o meio-ambiente e os interesses dos pequenos (pequenos de verdade e não os pequenos de até 500 hectares como usa Rabelo).
O código florestal gerará desmatamento nas propriedades pequenas e médias e afetará os solos, encostas e rios. O agricultor que não desmatar será engolido pelo vizinho seja economicamente ou mesmo ambientalmente com as conseqüências sistêmicas. Este descalabro ambiental significará um impacto na agricultura, sobretudo a pequena, favorecendo a ainda maior concentração fundiária colocando mais terras (agora já sem cobertura florestal) nas mãos daqueles que podem arcar com os custos em escala de irrigação, transgênicos, fertilizantes. Um país que avança: Amazônia adentro e floresta abaixo.
Este país que avança com moto-serras e latifúndios é o mesmo que cobra a vida daqueles que se oponham a ele no campo. Pelo menos 4 líderes ambientalistas e camponeses foram mortos nos dias seguintes ã aprovação do código. A velha impunidade dos ruralistas e seus jagunços se expressa no governo dito dos direitos humanos. Centenas de crimes como estes, desde Eldorado dos Carajás, seguem impunes e mesmo com tantas denúncias aparecendo na mídia o governo declara que nem conseguirá proteger 30 dos mais de 160 jurados de morte. É uma tragédia anunciada de um governo cúmplice não só do desmatamento e do latifúndio mas de seus assassinatos de lutadores. Esta “falta de vontade” denuncia os reais interesses de Dilma. Seu governo é aliado e sustentado não só por diversos setores evangélicos e católicos que lhe exigem vetos em questões de “costumes” mas também as empreiteiras e seu trabalho escravo como em Jirau (RO) e dos mais retrógrados oligarcas e ruralistas como Sarney. Não será com declarações da ministra de direitos humanos ou com as lágrimas de crocodilo de um Aldo Rabelo (pela morte de um militante do PCdoB nesta onda de assassinatos no campo) que se combaterá a impunidade no campo e sua base no latifúndio e agronegócio. Somente uma mobilização independente dos trabalhadores urbanos e rurais aliados aos camponeses pobres e ambientalistas radicais é que pode garantir a segurança no campo e enfrentar o latifúndio e a devastação ambiental defendendo a expropriação sobre controle dos trabalhadores rurais de todo o agronegócio combinada a reforma agrária em diversas áreas do país.
O governo declarado dos direitos humanos honra seus compromissos com os mais reacionários evangélicos e católicos
Quando Dilma foi eleita grupos de mulheres em todo o país saudaram sua eleição como um passo nos direitos das mulheres e que nele se poderia dar passos também pelos direitos da população LGBTTI e até contra os militares abrindo outro flanco democrático. É todo o contrário que se mostra. Apesar de mostras contraditórias na situação nacional, onde o STF votou favoravelmente a estender os direitos da união estável a uniões homoafetivas, e o governador do Rio e Janeiro toma medidas para criminalizar a homofobia.
Entre os debates democráticos aquele que mais tem suscitado discussões e mesmo rachas incipientes com o governo são as questões dos direitos da população LGBTTI. Mesmo depois do julgamento favorável do STF, o governo tomou uma medida ao sabor de um Bolsonaro. O MEC havia formulado uma cartilha e vídeos que expunham adolescentes enfrentando homofobia por suas orientações sexuais. Esta cartilha seria distribuída nas escolas e mesmo que sabemos não seria ela mas a organização independente dos movimentos LGBTTI, mulheres, trabalhadores, quem poderiam dar um basta nesta humilhação e violência cotidiana e sistemática que fazem do país um campeão não só em feminícidios (de mulheres) mas também de homossexuais, travestis e transexuais, esta cartilha permitia abrir uma discussão “cultural” sobre a questão. Eis que Garotinho e outros evangélicos tomam a frente da oposição ao projeto e prometem ajudar a complicar a vida do governo e de Palocci se não fosse suspensa a cartilha ou Haddad cair e o que o governo decidiu? Honrando seu compromisso de campanha assumida na campanha eleitoral não mexer neste vespeiro. Retirou a cartilha e ainda deu uma comida de orelha no ministro da educação falando que o vídeo era absurdo e fazia propaganda de “opções sexuais” e que de agora em diante todas questões de “costumes” passariam por consultas ã bancada religiosa.
Grupos de mulheres afins ao governo, como as Católicas pelo Direito de Decidir, já soltaram notas públicas em repúdio. Há descontentamento nesta vanguarda estendida progressista, e uma ampla possibilidade para que os revolucionários junto a estes setores coloquem de pé uma forte campanha contra a homofobia e pela liberdade sexual.
Neste “front” está acontecendo algo similar ao que vem ocorrendo em outras discussões democráticas. Não há jornal que consiga defender a sanha repressora da polícia paulista contra a marcha pela descriminalização da maconha. Até os mais frívolos meios como o Yahoo Notícias tem que publicar editoriais contra esta supressão dos direitos de reunião, consciência e expressão. A burguesia tenta com as UPPs e toda uma discussão sobre segurança nas escolas e universidades (apoiando-se nos terríveis acontecimentos de Realengo e do assassinato de estudante na USP) ter uma base de apoio preventiva para militarização de diversos espaços de moradia e sociabilidade. No entanto, há questionamentos repetidos contra a polícia como neste caso paulistano. O aparecimento de um ativismo proletário
Os incipientes questionamentos nestas questões democráticas tem sido acompanhados por um florescer de ativismo proletário e mesmo de lutas econômicas sobretudo de setores precários como nas obras do PAC, terceirizados em universidades, fábricas e serviços de telefonia e telemarketing e recentemente em outro setor precário, os professores (sem expressar tanto elementos explosivos e anti-burocráticos como em parte dos primeiros). Não só estão acontecendo estas lutas, este ativismo nestas empresas e locais de trabalho, como há algum nível estendido de apoio ás mesmas. O fenômeno da Internet e midiático da professora potiguar Amanda Gurgel aponta neste sentido. A situação da educação no país se choca com a expectativa e discurso de um país que avança, e se constitui em outro flanco fraco do governo. A precarização da educação é funcional a precarização do trabalho em geral, quando muito formando gente para ser super-explorada. Este conjunto de lutas econômicas isoladas, com pouquíssimas exceções, tem, no entanto, se mantido programática e estrategicamente sem questionar a precarização do trabalho, rotatividade e terceirização vigentes.
Mesmo com diversos setores precários em luta nas obras do PAC e da construção civil em geral nenhum setor dirigente, nem mesmo o PSTU que dirige a construção civil em Fortaleza e Belém tem levantado questionamentos que apontem ã incorporação dos terceirizados ás empresas e órgãos públicos onde trabalham ou levantado um valor mínimo para a reprodução decente da vida dos trabalhadores como seria com a imposição do salário mínimo do DIEESE. Em diversos estados professores estão em luta por algum aumento salarial, benefício, e pelo piso nacional dos professores (cerca de R$ 1200) mas muito aquém do formulado pelo DIEESE como necessário para atender aos preceitos constitucionais do salário mínimo (mais de R$ 2100). Também não está se levantando a necessidade de garantir uma jornada de 50% na sala de aula e 50% fora para os professores garantirem uma melhor preparação das aulas e saúde destes trabalhadores. A esquerda anti-governista dirige diversas seções de sindicatos da educação e, entre outros, os poderosos CPERS (Rio Grande do Sul) e SEPE (Rio de Janeiro). A partir destes sindicatos seria possível convocar uma plenária nacional de delegados dos comandos de greve para unificar todas as greves em curso.
O frear da greve dos metroviários de São Paulo por parte de sua direção (PSTU e PSOL com ambos encaminhando postergar a decisão sobre greve na histórica assembléia de terça-feira 31/5 depois da divisão da mesma) é mais uma expressão cabal desta adaptação a um sindicalismo palatável, “responsável”, que curva-se frente as pressões da justiça burguesa, abandona outras categorias em greve como os rodoviários do ABC, ferroviários de SP e trabalhadores das águas (SABESP), e contribui para a divisão da categoria (no caso entre novos e antigos funcionários, aceitando os menores salários dos novos mas gritando pela unidade – ou seja os novos se submetendo aos velhos que aceitavam a proposta patronal). Com esta negativa da greve em metroviários mesmo com centenas de trabalhadores querendo greve na maior assembléia da década, o PSTU e o PSOL ajudaram a burocracia sindical pelega a rifar as greves nestas outras categorias igualmente arrouchadas e sob intensa pressão da mídia e da justiça burguesas.
Ainda nos marcos do reformismo a classe trabalhadora parece estar exercitando suas forças. Somente nestas greves de professores e setores precários pode-se contabilizar até o momento 468 mil grevistas seguindo os números divulgados pela imprensa para cada uma destas greves. Algumas destas greves tem sido duras mas no geral tem se mantido como lutas de pressão por concessões salariais. O mais qualitativo é a continuidade da subjetividade reformista e organização anteriores que ainda respalda a burocracia sindical, no entanto, o aumento em freqüência e extensão das lutas, e fundamentalmente o ativismo que desponta apontam para novidades.
Nós da LER-QI procuramos elevar a luta dos terceirizados da USP a uma contestação da precarização e terceirização e junto aos companheiros em luta, estudantes apoiadores, juristas e intelectuais este movimento transcendeu seus limites corporativos tornando-se um fato político contra esta escravidão moderna e pela incorporação dos terceirizados. A esquerda anti-governista nas dezenas de sindicatos que dirige de municipais, professores, metroviários e até construção civil poderia fazer o mesmo, mas acomodada a uma lógica das lutas salariais ano a ano não dá este salto programático e estratégico. Coloca-se ao passo do movimento que está ocorrendo, não a sua frente.
Em direitos humanos e civis emergem debates e possibilidades de frente únicas progressistas em programa e na luta de classes. Também na classe trabalhadora parece processar-se um acumulo de forças que se expressa neste ativismo e nestas várias lutas citadas, ainda todas em um marco de expectativas reformistas. Mesmo assim é possível desenvolver um forte trabalho preparatório não das lutas salariais de hoje mas da luta estratégica da classe trabalhadora contra a precarização do trabalho e terceirização. É possível desenvolver um ativo trabalho que defenda intransigentemente os direitos das mulheres e LGBTTI na classe trabalhadora e juventude, partindo de uma estratégia de independência de classe. A LER-QI joga suas modestas forças nesta aposta estratégica, para que uma vanguarda da classe trabalhadora junto a estudantes e intelectuais coloquem seus corpos e conhecimentos nesta perspectiva, construam um programa, uma prática política e estratégia não só para os necessários avanços, pequenos do dia a dia, mas do combate frontal contra estes pilares do “Brasil que avança” ás custas de nossos direitos elementares como o de nossos corpos, sexualidade, sangue e suor.