Europa
Reflexões sobre a Grécia
04/02/2015
A Grécia é um expoente máximo dos efeitos acumulados da crise econômica mundial. Como assinala o editorialista do Financial Times, Martin Wolf, o desemprego alcançou 26% e o PIB se encontra também em 26% abaixo do seu pico anterior ã crise de 2008. O gasto da sociedade grega em bens e serviços diminuiu ao menos 40%, cumulativamente. Segundo Paul Krugman a “desvalorização interna” que teve lugar no país heleno como consequência da queda salarial e, por isso, dos custos trabalhistas unitários, alcança 16%. | comentários
A Grécia é, em primeiro lugar, junto a Espanha, um dos países da Europa que sofreu mais violentamente a destruição de forças produtivas em seu território. Está entre as principais vítimas das políticas de “austeridade” impulsionadas e defendidas fundamentalmente pela Alemanha. Não é por acaso que o Syriza – em que grandes setores das massas descontentes depositaram suas expectativas – ganhou as eleições gregas nem é por acaso o crescimento das intenções de voto no Podemos no Estado espanhol, frente ã queda do PSOE e do PP.
Destruição criativa
Na Europa, e especialmente na Eurozona, vêm chegando tendências deflacionárias que segundo uma análise recente do The Economist, poderiam estar abrindo caminho a uma década perdida ainda pior que a do Japão nos anos 90. O recente QE (plano de flexibilização quantitativa) votado pelo Banco Central Europeu, com a oposição alemã, representa uma tentativa de resistir a este cenário. A efetividade dos planos de estímulo monetário é conhecida. No melhor dos casos são capazes de conter um desbarranque econômico agudo e podem – sob certas condições – alentar recuperações fracas. São impotentes, entretanto, para induzir um crescimento poderoso e reverter as condições críticas estruturais que impedem ciclos mais ou menos vigorosos de acumulação ampliada do capital. A destruição de forças produtivas, pelo contrário, como historicamente afirma – em um lampejo de honestidade burguesa e pouca habilidade política – a ortodoxia neoclássica, é a essência de um sistema que para reviver precisa destruir o construído – destruição criativa, chamou Schumpeter. O problema, claro, é que esta “maravilha” da criação consiste fundamentalmente na formação de grandes exércitos industriais de reserva e massas miseráveis, termina produzindo – no melhor dos casos para o capital – “grécias” e talvez “espanhas”.
A cauda do diabo
Se a combinação do QE na Eurozona e a destruição –fundamentalmente nos países do sul da Europa – será capaz, junto ás renovadas políticas de estímulo monetário no Japão e um eventual atraso do incremento das taxas de juros nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, de gerar algum tipo de recuperação conjuntural na Europa – incógnita colocada nas tendências da crise em debate –, está por ver-se. Aqui interessa uma reflexão mais profunda. É conhecida a simpatia de França, Itália e Espanha pelos Estados Unidos. Já o “Super Mário” – como chamam o presidente do BCE, Mario Draghi – havia prometido na conferência de Bancos Centrais em Jackson Hole – do outro lado do Atlà¢ntico e frente os olhares complacentes de seus colegas estadunidenses – um possível plano monetário ã norteamericana, se isso fosse necessário.
O QE ao qual a Alemanha se opôs, ainda que, provavelmente por medo das consequências de não implementá-lo, deixou passar, parece um ponto que marcam os Estados Unidos na sua influência sobre a região. As dificuldades econômicas para o dólar que se depreendem da consequente desvalorização do euro, poderiam ser menores que o risco de uma deflação aberta na Europa. Mas a tentativa de ingerência norteamericana parece estar sendo jogada numa partida dupla. A campanha praticamente aberta da imprensa anglo-saxã, The Economist, Financial Times, The New York Times, The Washington Post, pressionando a Alemanha pela “esquerda” e Tsipras pela direita, parece uma carta importante.
Anglo-saxões
Chama a atenção o discurso editorial particularmente unificado, incluindo colunistas como Martin Wolf. Como dizem bem Josefina Martínez e Diego Lotito aqui, a política de cancelamento da dívida combinada com reformas estruturais vem sendo promovida há tempos desde o lado norteamericano. No entanto, desta vez parecia tratar-se de uma aposta mais forte para dobrar politicamente a Alemanha. Em primeiro lugar, brandindo Tsipras como uma espécie de “homem-bomba”, e obrigando-o, por sua vez, a girar ainda mais ã direita (questão que por agora parece bastante simples), colocando a Grécia como uma espada de Dâmocles pendurada sobre o futuro da Eurozona e da União Europeia, se é que a Alemanha não cede (o que, é claro, não deixa de ser parte da realidade). Esperam que se a pressão sobre a Alemanha tiver efeito, Tsipras, nas palavras do semanário inglês The Economist, “jogue no lixo seu socialismo maluco e se atenha ás reformas estruturais em troca de um perdão da dívida”. Convém lembrar que o “socialismo maluco” de Tsipras consiste, também nas palavras do The Economist, em “seus planos de voltar a contratar 12.000 trabalhadores do setor público, abandonar a privatização e introduzir um grande incremento no salário mínimo”.
Esta “loucura delirante” frente a um desemprego, na Grécia, semelhante ao que nos anos 30 o Estado norteamericano respondeu com o New Deal, teria como consequência, sempre nas palavras do semanário, “desfazer conquistas adquiridas pela Grécia no terreno da competitividade”… E isso permite suspeitar de uma aposta maior dos Estados Unidos e do arco anglo-saxão na Grécia. Se terminando de disciplinar Tsipras e dobrando a Alemanha, se conseguisse uma comunhão do QE com a destruição de forças produtivas ali reinante, a Grécia poderia – em virtude do extraordinário aumento do benefício conseguido em termos relativos a outros países – iniciar um ciclo de recuperação econômica, que estaria baseada, é claro, na desvalorização interna de que fala Krugman.
É que a “decolagem da economia grega” que parece estar buscando o arco anglo-saxão (casa matriz do neoliberalismo), é na realidade uma decolagem dos lucros capitalistas. Esta decolagem se basearia logicamente em custos trabalhistas rebaixados em 16% e muito mais que isso porque seu preço de mercado está sujeito a um exército de desempregados equivalente a 26% da população grega. Além disso os capitais externos poderão aproveitar as privatizações em uma Grécia totalmente desvalorizada. Um negócio redondo. Aí sim, a chave é aproveitar os ganhos de “competitividade” obtidos que não se conseguem tão facilmente. Vale mencionar também que o The Economist considera que se tem que tratar a Grécia como um país africano em bancarrota.
Syriza
A partir de sua aliança com o partido nacionalista da direita xenófoba, Gregos Independentes, e a nomeação do principal dirigente deste partido no Ministério de Defesa, o Syriza enviou múltiplas mensagens. Entre as quais, para implementar um programa cada vez mais mergulhado em desvalorização progressiva, não tem intenção – reafirmando algo que já estava bastante claro – de apoiar-se na mobilização do movimento operário e de massas. A segunda é um limite ã sua obediência ã União Europeia. O primeiro aspecto fortalece as ilusões da frente anglo-saxã de fazer do Syriza um instrumento seu, buscando transformar a Grécia em um exemplo da possível recomposição da convivência entre a “democracia” e os “mercados”.
O segundo aspecto que abre a incógnita de um eventual giro da Grécia em direção ã Rússia e até onde poderia chegar, por agora é só isso, uma incógnita. O que é certo é que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha a estão utilizando como outro instrumento de pressão sobre a Alemanha, cuja aliança com a Rússia ficou fortemente golpeada a partir da anexação da Crimeia e a continuidade do conflito sobre o futuro da Ucrânia. Nada está dito ainda. A utilização da Grécia como cenário para medir relações de força interimperialistas, poderia inclusive colocar mais lenha na fogueira de uma situação crítica. As forças dos trabalhadores e dos setores pobres e oprimidos da Grécia estão íntegras. No próximo período farão sua experiência com este novo governo como parte de um processo que recém começa.