Internacional
As tensões entre Obama e Erdogan em meio aos protestos contra o governo turco
08/10/2014
Depois de dois meses de bombardeios da coalizão liderada pelos Estados Unidos contra o Estado Islà¢mico na Síria e no Iraque, a operação idealizada por Washington tropeça em suas próprias contradições. Não só foi incapaz de deter a ofensiva incontida dos milicianos yihadistas, mas se questiona cada vez mais a eficácia campanha aérea diante dos avanços sunitas na Síria, com a virtual perda da cidade de Kobani; além disso, promove constantes fissuras entre os aliados norteamericanos, provocando tensões crescentes entre a administração Obama e seu principal aliado da OTAN no Oriente Médio, a Turquia, em meio ã crise de refugiados curdos e os protestos da população turca contra a inação do governo de Erdogan frente ao massacre do Estado Islà¢mico nas regiões curdas.
Os sucessivos triunfos militares dos insurgentes sunitas no Iraque e na Síria, estabilizando o controle sobre um enorme território, fazem com que seja a coalizão, e não o EI, que se encontre pressionada por reveses táticos no terreno. Ao menos 412 pessoas morreram durante as três semanas de enfrentamento entre os yihadistas e os combatentes curdos ao redor da cidade de Kobani, tomada pelo EI para consolidar seu avanço ao norte (depois de ter se apoderado da segunda cidade do Iraque, Mosul). Em meio ã ofensiva, 180.000 pessoas fugiram para a Turquia desde Kobane, incrementando o patrulhamento da fronteira pelo Exército turco, e também os enfrentamentos com os refugiados que tentavam cruzar a fronteira.
O plano de Obama de combater sem ser obrigado a empregar tropas terrestres e ver-se envolvido na guerra civil síria se encontra sob pressão cada vez mais aguda. Em Washington, ninguém esconde que o Estado Islà¢mico resiste aos bombardeios da ofensiva norteamericana, uma campanha aérea insuficiente que não consegue nenhuma vitória clara. Desde o primeiro momento, o objetivo de Obama foi debilitar por bombardeios a estrutura do Estado Islà¢mico para que depois tropas terrestres locais – o exército iraquiano e a oposição síria treinada pelos EUA – se encarregassem do combate no terreno. Esta estratégia – permitir ás forças regionais aliadas competirem entre si e balancearem umas ás outras, evitando o protagonismo de Washington em demasiadas frentes simultâneas – dependia de uma firme coalizão de Estados com papel destacado das potências regionais (como Arábia Saudita, Catar e Turquia) que protagonizassem o combate em terreno.
Entretanto, as petromonarquias da Liga Árabe (Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Kwait) e os estados vizinhos temem conseqüências políticas mais graves aos regimes de cada país, caso intervenham com mais decisão contra os sunitas. Além disso, vários destes países financiaram o Estado Islà¢mico para derrubar o regime de Assad durante a guerra civil síria, regime aliado do Irã, que rejeitou a intervenção na Síria e do qual depende em boa medida a estabilização do Oriente Médio.
As tensões entre os Estados Unidos e a Turquia
Apesar da permissão ao Exército turco, aprovada no parlamento, de cruzar a fronteira com a Síria, as forças armadas de Ankara se limitaram a observar o avanço yihadista em Kobani, negando auxílio aos combatentes curdos a poucos quilômetros da fronteira com a Turquia. O presidente Recep Tayyip Erdogan disse a 7/10 que a Turquia não se envolverá no conflito contra o Estado Islà¢mico a menos que os Estados Unidos concorde em apoiar a oposição síria na deposição de Bashar al-Assad, inimigo aberto de Erdogan, assim como a impossibilidade de enviar tropas sem uma zona de exclusão aérea capaz de repelir os bombardeios da Força Aérea síria.
Esta resposta – o primeiro rechaço de um país aliado e membro da OTAN a colaborar militarmente com a coalizão – aprofundou as tensões entre Erdogan e Obama, que não queria envolver a questão síria em meio ao combate ao EI. Um oficial de Washington disse “É angustiante observar a Turquia se arrastando para prevenir um massacre a menos de uma milha de sua fronteira. Não é assim que deve agir um membro da OTAN”. A Turquia é a principal rota para estrangeiros se alistarem nas fileiras do EI. Esta posição de Erdogan busca extrair benefícios próprios da necessidade dos EUA de estabilizar a região, fundindo a possibilidade de sucesso em combater o EI ã investida contra um regime inimigo. Isto pode alterar também as posições de países que lutam pela queda de Assad, como Arábia Saudita e Catar.
As tensões entre os aliados emergem como eco das duras exigências do presidente turco para que os Estados Unidos lidere a coalizão intervindo com tropas, tirando protagonismo dos estados vizinhos. “Somente com bombardeios aéreos não se pode por fim a este terror. Se a coalizão que cumpre esta missão não estabelece movimentos militares terrestres, não poderá solucioná-lo com ataques aéreos. Assim passaram meses sem resultado, e Kobani está a ponto de cair”, disse Erdogan. Estas manifestações são apoiadas por setores da cúpula militar e políticos republicanos nos EUA, como o chefe da Casa dos Representantes, John Boehner.
Protestos na Turquia contra o governo de Erdogan
Pelo menos 18 pessoas morreram, e centenas ficaram feridas, em uma série de violentos protestos em várias cidades majoritariamente curdas no sudeste da Turquia, além das capitais Istambul e Ankara, contra a passividade do governo turco diante do massacre em Kobani. O governo de Erdogan acionou o toque de recolher em várias províncias e militarizou as ruas, relembrando cenas que não se viam desde a década de 1990 nos enfrentamentos entre o Estado e o grupo separatista curdo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão).
Em cidades como Hakkari, Van, Batman, Mardin e Diyarbakir (considerada a “capital curda” na Turquia) os manifestantes ergueram barricadas, bloquearam o tráfego e queimaram ônibus municipais contra a repressão policial, protagonizadas majoritariamente por grupos pró-curdos, inclusive setores do PKK, cuja milícia é muito próxima ás Unidades de Proteção Popular que lutam contra os yihadistas na Síria. Centenas de manifestantes curdos irromperam nesta terça-feira na sede do Parlamento Europeu em Bruxelas contra a inatividade da União Europeia ante o avanço do Estado Islà¢mico.
Por trás do condicionamento feito por Erdogan aos EUA para entrar em combate com o Exército turco na fronteira está o temor de fortalecer os militantes separatistas em seu próprio território. Atualmente, ambas as partes se encontram num frágil processo de paz que busca por fim ao conflito iniciado em 1984, quando o PKK se levantou em armas contra a Turquia para exigir a independência do Curdistão e o reconhecimento de direitos políticos aos curdos. O conflito provocou dura repressão estatal com mais de 40.000 mortos, a maioria de militantes curdos, e desde então o PKK é considerado uma organização terrorista pela União Europeia e os EUA. Calcula-se que haja 50 milhões de curdos (a maior população do mundo sem Estado próprio) espalhados entre a Armênia, a Turquia, o Irã, o Iraque e a Síria, uma história trágica que não pode ser resolvida pelas mãos das potências imperialistas, cuja política é eternizar a escravização dos povos oprimidos.
Estes protestos poderiam se desenvolver numa importante crise interna do regime de Erdogan, já debilitado como produto das manifestações na praça Taksim em 2013, agravando a instabilidade da coalizão liderada pelos Estados Unidos.
Os Estados Unidos, que bombardeia a Síria sem autorização do governo local, descarta qualquer colaboração com Assad para derrotar o inimigo comum. Entretanto, seu objetivo de treinar a oposição síria para servir de tropa terrestre contra o Estado Islà¢mico se enfrenta com a percepção crescente da oposição de que esta ofensiva serve de salvavidas ao regime de Assad. A debilidade das tropas iraquianas e a previsão de uma operação que durará anos preenche de incertezas os países imperialistas no sétimo ano da crise mundial, recolocando o debate sobre a necessidade do envio de tropas norteamericanas e o fantasma das derrotas no Iraque e no Afeganistão durante a administração Bush.