TENSÃO NA áSIA
O que está por trás da escalada de tensões entre a China e o Japão?
07/12/2013
No final de novembro, a China anunciou o que se chamou de “zona de identificação de defesa aérea”, que recobre oito ilhas no Mar da China Oriental (conhecidas como Ilhas Senkaku no Japão, e ilhas Diaoyu na China) disputadas entre a China e o Japão, e abrangendo zonas de defesa aérea do Japão e da Coréia do Sul. A inesperada imposição unilateral por parte da China, que exige que todo avião estrangeiro, inclusive aviões comerciais de passageiros, anuncie e entregue de antemão seu plano de voo ás autoridades militares chinesas, vem justamente na semana anterior ã visita do vicepresidente norteamericano Joe Biden ao país, ao Japão e ã Coréia do Sul. Esta medida, que representa a tentativa por parte do governo chinês de reafirmar-se enquanto potência regional nos mares do sul e do leste asiático, recebeu imediata resposta de Washington, que enviou caças-bombardeiros B-52 para exercícios aéreos na zona demarcada pela China sem nenhum aviso prévio, o que foi aproveitado pelo Japão e pela Coréia do Sul, desafiando também a imposição de Pequim. As contradições diplomáticas abertas marcam assim a maior escalada no conflito entre EUA e China nesta área desde 1996, quando o então presidente chinês, Jiang Zemin, ordenou inúmeras zonas de exclusão para testes de mísseis no Estreito de Taiwan, revelando as tensões latentes e a crescente rivalidade entre Pequim e Washington na região da Ásia-Pacífico.
O interesse por estas ilhas desabitadas, que faziam parte de um acordo de defesa mútua entre os Estados Unidos e Japão, é que se localizam numa zona estratégica do comércio marítimo de todo o sudeste asiático: unindo os mares Oriental e Sul da China, conecta este país com a Indochina (Vietnã, Camboja, Laos até a Tailà¢ndia), e a Insulíndia (o complexo de ilhas em que destacam a Malásia, as Filipinas, Indonésia e Singapura), rica em recursos naturais como petróleo e gás. A resposta norteamericana se explica por que com este movimento a China investe contra um dos pilares da geopolítica do 2° pós-Guerra, pelo fato de que esta zona marítima é comandada pelos EUA desde o final da Segunda Guerra Mundial, sendo o alvo principal do giro na política externa do governo Obama do Oriente Médio para a Ásia, com o objetivo de obstaculizar o ascenso da China enquanto uma potência política e econômica.
Para o governo chinês, que antecedeu a implementação desta nova zona com inúmeras visitas diplomáticas do presidente Xi Jinping em todo o sudeste asiático (aproveitando-se da paralisia do governo Obama durante o fechamento da administração), este movimento atende ã satisfação de três condições estratégicas, ofensivas e defensivas: 1) expandir sua zona de influência pelo sudeste asiático através do Mar da China Oriental para o Mar do Sul da China, conquistando primazia frente aos Estados Unidos enquanto potência preeminente nas relações comerciais com os países da Associação de Nações do Sudeste Asiático, eventualmente diminuindo ou bloqueando a interferência dos EUA e de seus aliados na região, Coréia do Sul e Japão; 2) consolidar uma alternativa chave de obtenção de recursos energéticos pela via marítima, que não dependa tanto da Rússia e dos países continentais da Ásia; 3) desviar os problemas políticos internos do país, com a insatisfação crescente dos trabalhadores e camponeses chineses com a desaceleração do crescimento do PIB chinês (quase 7,5%), produto do desenvolvimento da crise econômica mundial.
Trata-se, geopoliticamente, de uma tentativa da China de utilizar-se das dificuldades norteamericanas para “conquistar posições ofensivas” no mapa estratégico asiático, batalhando pelo controle comercial da área e debilitando ao mesmo tempo seus rivais históricos como o Japão. Segundo o The Economist, “A China está ansiosa por restabelecer seu domínio na região. A amargura que sente sob a memória da selvagem ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial aguça este desejo. [...] Na aurora da crise econômica mundial, talvez acreditando em sua própria narrativa de um crescimento chinês e um declínio norteamericano, começou a passar dos limites em seus acordos com os vizinhos. Enviou navios a recifes disputados, pressionou monopólios petrolíferos estrangeiros a deter sua exploração, e acossou navios de guerra americanos e vietnamitas no Mar do Sul da China. [1]” Um plano, entretanto, nada isento de contradições e atravessado por fenômenos de luta de classes, que o governo do PC Chinês quer atenuar usando o fator internacional.
Os problemas chineses em seu próprio país
O anúncio da zona de identificação aérea está acompanhado por graves dificuldades internas ao governo chinês. Ocorre semanas depois do terceiro pleno do 18° Comitê Central do Partido Comunista Chinês, que pôs em marcha um plano aprofundado de reformas econômicas e sociais capitalistas, com paralelo apenas com as reformas de abertura econômica levadas a cabo por Deng Xiaoping em 1978. Suas principais medidas versam sobre a liberalização da economia e o impulso ã iniciativa privada, de acordo com a intenção dos líderes chineses de tornar a economia do país menos dependente das exportações e dos investimentos estatais durante a crise, e mais fundamentada no consumo interno. Como medida preventiva ás gigantescas contradições que essa mudança no padrão econômico da China acarretaria, nos setores exportadores, mas também em meio a protestos crescentes da população e graves tensões étnicas, criou-se um comitê segurança estatal, que concentra ainda mais poder repressivo nas mãos do presidente Xi Jinping. Como expressão deste giro de robustecimento do mercado interno, o governo pretende atrair força de trabalho chinesa do campo para a cidade, enfraquecendo o milenar registro de residência ou “hukou” – que liga a pessoa a seu lugar de nascimento, e que impede na prática que os habitantes das zonas rurais emigrem com suas famílias para os grandes centros industriais – abolindo as restrições de residência em pequenos municípios e relaxando-as nas grandes cidades, além de aumentar a média salarial dos trabalhadores urbanos. Segundo o El País (14/11), “Pequim quer acelerar os planos de urbanização para que dezenas de milhões de camponeses se mudem para as cidades e, em consequência, consumam mais. Os camponeses receberão direitos para ‘possuir, utilizar, beneficiar-se e transferir a terra da qual têm contrato (de uso)”. A isso, somam-se medidas de abertura de linhas de crédito ligadas ã expansão do setor bancário privado, para dar conta de incluir os milhões de chineses emigrados aos circuitos comerciais.
Isto significa, na dinâmica de avanço da iniciativa privada, atulhar as grandes cidades com exércitos de desempregados, por um lado, e pelo outro, declarar “guerra” ao campo, pois as terras comunais serão também atacadas. A concentração reforçada do proletariado chinês nas principais zonas urbanas chinesas é uma verdadeira bomba relógio da luta de classes num país fundado na hiperexploração do trabalho, independentemente do incremento episódico nos salários. Desde 2012, são dezenas de conflitos trabalhistas que abrangem milhares e até dezenas de milhares de operários, revoltas operárias com as condições de trabalho e os suicídios recorrentes, como a greve de 6.000 trabalhadores na fábrica de aparelhos celulares Flextronics num distrito de Shangai, e a paralisação 79.000 operários em uma fábrica administrada pela Foxconn na província de Taiyuan. A reincidência de protestos operários exigindo pagamentos atrasados de empresas em dificuldades financeiras pela crise, a instabilidade no campo, as ameaças de fechamento de fábrica e demissão juntamente ás possibilidades de inflação nos preços, como em 2010, promovem greves e paralisações que apesar de não ganharem os noticiários, são um fator de peso na política do PC Chinês, em meio a planos que envolverão a continuidade mais brutal desta exploração pelo impulso ã iniciativa privada e a perda de direitos sociais com as reformas de mercado. O próprio governo de Pequim admite que “se enfrenta a numerosas ameaças ameaças dentro de suas fronteiras, em particular os surtos de violência e protestos que regularmente se produzem em algumas regiões cujas minorias étnicas se consideram oprimidas pelo governo central, como Xinjiang, no oeste do país, lar da minoria muçulmana uigure, e no Tibet. [...] Outras potenciais ameaças ã estabilidade interna são o crescente número de protestos da população por razões meioambientais e trabalhistas, expropriações de terras e corrupção” (ElPaís, 14/11).
É daí que a criação de um comitê de segurança estatal, na propaganda do PC Chinês, tome todos os cuidados para não aparecer como medida de recrudescimento da repressão interna, mas reveste-se de meio para o governo de Xi Jinping unificar a nação por trás de objetivos “nacionalistas com traços expansionistas”.
A diminuição do poder de persuasão dos EUA
A 2/12 a Casa Branca declarou que não aceitará a legitimidade da nova zona, qualificando-a como uma “provocação ao status quo existente”, enfatizando que o domínio norteamericano na região continuará tão efetivo quanto em décadas passadas.
Apesar da contundência ditada pelo poderio militar incomparável dos EUA e que provavelmente fará com que Pequim amorteça a pressão, os EUA chega a esta crise longe de estar nas melhores condições. A consequência da debilidade estratégica que a crise síria desnudou tem enormes implicações na capacidade dos Estados Unidos de exercer seu papel como policial mundial e impor seus interesses a aliados e inimigos. Isto fica evidente nesta nova escalada frente ã China. O marcante é o declínio histórico do poderio norteamericano, que não é capaz de restabelecer o equilíbrio no Oriente Médio ainda sacudido pelos complexos processos da primavera árabe, dificultando a conclusão do giro na política externa do governo Obama para se concentrar na Ásia. Desde o recuo da ameaça a uma intervenção direta de Washington sobre o regime de Assad [2], o governo Democrata dos EUA se enfrenta com a polarização incessante por parte dos Republicanos, culminando em paralisias temporárias e a incertezas, como o fechamento da Administração em Washington nos debates orçamentários e a crise de elevação do limite de endividamento dos EUA, que degradam a imagem internacional do país e debilitam a gestão de Obama. Não ã toa, embora tenha respondido rapidamente ã iniciativa chinesa, o governo ianque “aconselhou” ás companhias aéreas norteamericanas que respeitassem as exigências militares de Pequim.
Além disso, a débil recuperação econômica norteamericana a despeito dos planos de “relaxamento quantitativo” (QE3) do FED é evidente, sendo a continuidade da injeção monetária – reafirmada pela nova presidente do banco central, Janet Yellen – um nítido contraste com sua incapacidade de diminuir a taxa de desemprego no país, que permanece estável a 7,4%. Essas tensões começam a ganhar maiores contornos na luta de classes no principal imperialismo do mundo. Há alguns meses, os trabalhadores das principais cadeias de fast-food se rebelaram contra a superexploração e os salários miseráveis, reivindicando o direito a sindicalizar-se (sendo que a ínfima minoria dos trabalhadores é sindicalizada nos EUA). Mais recente é o conflito dos trabalhadores da maior rede de mercados do mundo, o Wal-Mart, por melhores condições de trabalho e salários, pela sindicalização e a readmissão de 23 funcionários demitidos por fazerem greve. Neste marco, ainda com as dificuldades subjetivas e a falta de organização do precariado no setor de serviços e sua instabilidade trabalhista, aparecem como maior candidato a protagonizar as próximas expressões de luta de classes nos EUA. Também de pé estão os operários da Boeing em Seattle contra a eliminação das pensões.
Ao usar o acordo com a Rússia como tábua de salvação frente ás dificuldades do conflito sírio, os EUA entra claramente sem o fator da dissuasão para terminar a seu favor com as tensões no Mar Oriental da China. A decadência do imperialismo norteamericano como potência hegemônica é o principal fator que explica o por que esta disputa atual não pode ser resolvida como imposição retórica, mas também não pode resultar em um enfrentamento, que mudaria muito a situação internacional quando tanto EUA e China buscam vias diplomáticas de cooperação como forma de fortalecer-se um ás expensas de outro. Isto é também uma expressão clara do esgotamento do pacto entre EUA como comprador e China como vendedor em última instância de mercadorias baratas.
Impossibilidades objetivas que diminuem a capacidade dos rivais de impor sua vontade
Apesar da preponderância econômica e militar indiscutível do imperialismo norteamericano no cenário mundial, nem os EUA nem a China estão nas melhores condições para implementar com maior contundência suas linhas estratégicas: a China, pelo desaceleramento econômico e os planos que farão enfrentar-se com o maior proletariado do mundo, e os EUA, cujo sistema político experimenta a maior crise de representatividade institucional em sua história, com fissuras crescentes na geopolítica que emergiu do segundo pós-guerra em função de sua decadência hegemônica. A própria iniciativa chinesa respondia mais ã necessidade de demonstrar firmeza ante a pressão interna crescente, do que testar a fortaleza da aliança entre Washington e Tóquio, o que poderia debilitar sua credibilidade regional. A atuação destas condições objetivas provavelmente tornará mais lento o desenvolvimento aberto desta escalada entre os dois países, ainda que não exclua viradas abruptas e saídas militares (o que por ora não figura nos interesses de nenhum dos rivais). Entretanto, estes choques, por ora limitados ao campo diplomático e das demonstrações de força, prenunciam o caráter grandioso das contradições que se acumulam na disputa por zonas de influência que, no sexto ano da crise mundial, abrange algumas das principais potências (EUA, China, Alemanha, Rússia), golpeando mais fortemente as regiões da Ásia e do Leste Europeu. Mais importante, não serão processos pacíficos internamente ás grandes burguesias nacionais, já que entranham importantes desenvolvimentos da luta de classes em alguns dos principais proletariados do mundo.
NOTASADICIONALES
[1] The Economist, 30/11
[2] Um recuo imposto pelo rechaço ao plano de intervenção pelo principal aliado dos EUA, o parlamento britânico, além da contraposição contundente da Rússia e da China no Conselho da ONU e dos “emergentes” na cúpula do G20, tendo internamente a desaprovação de seu próprio Congresso e maior oposição popular norteamericana desde 1945 ás intervenções militares. Cf. “Síria, como revelador da crise hegemônica norteamericana”, http://www.ler-qi.org/Siria-como-revelador-da-crise-hegemonica-norteamericana